Carlos Heitor Cony: A noite do aprendiz de Daniel
A enfermeira desliza sem barulho pelos ladrilhos. A silhueta branca é repousante, mas é um disfarce. [Ali]ás, tudo ali é disfarçado de vida, não é mais vida e ainda não é morte. Nas mãos enluvadas, que parecem a pele de um animal sem nome, ela traz a seringa. O líquido sem cor penetra em sua carne,...
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Published in | Folha de S. Paulo |
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Format | Newspaper Article |
Language | Portuguese |
Published |
São Paulo
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22.07.2005
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Summary: | A enfermeira desliza sem barulho pelos ladrilhos. A silhueta branca é repousante, mas é um disfarce. [Ali]ás, tudo ali é disfarçado de vida, não é mais vida e ainda não é morte. Nas mãos enluvadas, que parecem a pele de um animal sem nome, ela traz a seringa. O líquido sem cor penetra em sua carne, e ele começa a ficar tonto, mas é uma tontura confortável, segura, na realidade, é o primeiro arremesso do outro lado. Como pode? Percebe que atordoaram seu pavor, desconectaram suas lembranças, resta-lhe apenas um fiapo de lucidez, suficiente para apalpar a rigidez do rito que será celebrado. O líquido sem cor amorteceu os sentidos, mas escancarou o ouvido, ele ouve, longe, o barulho do carrinho que se aproxima. As rodas de borracha quase não se atritam nos ladrilhos brancos, o carrinho desliza suavemente, sente a aproximação, cresce o barulho das rodas, subitamente pára, mesmo assim, ele sabe que o carrinho está ali. Parou em frente à sua cela -já não é mais um quarto, é a cela dos que esperam. Adivinha que a porta se abriu mansamente e que o carrinho se aproxima do leito para buscá-lo. Basta levantar o braço e poderá tocar a beira de metal frio que encostam à cama. |
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