Arnaldo Jabor

Antes de 64, o ritmo das coisas tinha a linearidade de um filme acadêmico. Para nós, jovens de esquerda, o país era ameaçado por uma vaga "direita" que não romperia o contrato imaginário de uma luta "cordial". Falávamos muito em "luta de classes", mas não conhecíamos ai...

Full description

Saved in:
Bibliographic Details
Published inGlobo (Rio de Janeiro, Brazil)
Format Newspaper Article
LanguagePortuguese
Published Rio de Janeiro Grupo de Diarios América 20.09.2005
Subjects
Online AccessGet full text

Cover

Loading…
More Information
Summary:Antes de 64, o ritmo das coisas tinha a linearidade de um filme acadêmico. Para nós, jovens de esquerda, o país era ameaçado por uma vaga "direita" que não romperia o contrato imaginário de uma luta "cordial". Falávamos muito em "luta de classes", mas não conhecíamos ainda a violência da "reação". Acreditávamos em um Papai Noel histórico. Dizíamos: "Nosso Exército é democrático porque é de classe média e a burguesia nacional é progressista. Não trairão Jango". Nada descreve o choque do aparição súbita de Castello Branco na capa da "Manchete". Nunca ouvíramos falar daquele homenzinho fardado, feio como um ET. De repente, tivemos a certeza de que tínhamos "subestimado o inimigo". Rompeu-se em 64 o sonho de que as idéias mudavam o mundo. Não tínhamos mais o "futuro harmônico" de um socialismo imaginário. Um general baixinho mandava em todos , acima das "sagradas massas". Grande trauma. Aprendizado: o coloquial, a ignorância, o acaso eram mais fortes que nossos generosos desejos. Fizemos, claro, um diagnóstico "histórico": "64 foi um golpe dado pelo conservadorismo das elites diante das massas surgidas na industrialização, com o apoio do imperialismo". Tudo bem -- mas, foi muito mais um golpe dado pela classe média apavorada, com medo de sua ala "de esquerda". A esquerda -- toda de classe média -- (não havia "operários" no Brasil, antes de surgir a alegoria de Lula) era o braço generoso e crítico desta mesma classe média. Descobrimos que não havia "massas proletárias". Achávamos que íamos lutar contra os "yankees" e fomos vencidos por nossas tias. A adesão a 64 foi impressionante. Nossos pais, primos, avós, todo mundo era "de direita". A esquerda janguista foi coberta de ridículo. Acabou ali a idéia de que o país era um projeto positivo que evoluía -- Brasília, bossa nova, reformas, tudo parou ali.